sábado, 6 de agosto de 2011

Comemorando os 50 anos do Concílio Vaticano II

CNBB, 2011

O Pontifício Comitê de Ciências Históricas promoverá, de 3 a 6 de outubro de 2012, em Roma, um congresso internacional para comemorar o início do Concílio Vaticano II. Os preparativos da iniciativa foram anunciados pelo organismo, presidido pelo padre Bernard Ardura, que o organizará em colaboração com o Centro de Estudos sobre o Concilio Vaticano II da Pontifícia Universidade Lateranense.

O congresso será o início de uma ampla pesquisa internacional conduzida pelas Sociedades de História eclesiástica e pelas Associações de Arquivos eclesiásticos de diversas nações, todas sob a direção do Comitê vaticano.

A pesquisa reunirá documentos de cientistas especializados de diversas nações e deverá se transformar em um ‘manual’ dos arquivos pessoais dos padres conciliares. Na realidade, o encontro será o momento final de verificação, confronto e síntese das pesquisas antes realizadas em vários campos.

A iniciativa terá também um ciclo de conferências organizado em colaboração com o Centre Saint-Louis de France, a se realizar entre fevereiro e março de 2012, sob o tema “Reler os grandes textos do Concílio Vaticano II. História e teologia”. O objetivo será a leitura histórica e teológica dos grandes documentos do Concílio Vaticano II.

No Brasil, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) também se prepara para comemorar a data. Uma Comissão foi formada e uma série de atividades está sendo programada para os próximos três anos.


Originalmente disponível em: http://www.cnbb.org.br/site/imprensa/internacional/7232-comemorando-os-50-anos-do-concilio-vaticano-ii

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

A Igreja: Que É Isso? Para Onde Vamos? Eclesiologia* Mínima

Márcio L'Oliveira



"Ele é a Cabeça do corpo, da Igreja"
(Cl 1,18)

A Igreja é o navio que navega bem neste mundo, ao sopro do Espírito Santo com as velas da Cruz do Senhor plenamente afastadas.
(SANTO AMBRÓSIO)

 “A Igreja quer ser ‘Igreja para o povo’, mas bem pouco ‘Igreja do povo
(J. B. METZ)



“Creio na Igreja Católica?”

Quantas vezes já recitamos na missa: “Creio na Igreja Católica...”: cremos mesmo? O que é crer na Igreja? É importante salientar que não é a mesma coisa que dizer: “Creio em Deus Pai” ou “Creio em Jesus Cristo” ou “Creio no Espírito Santo”! A Igreja não é a divindade; melhor seria dizer: “Creio em uma Igreja...”; para não confundirmos a obra com seu criador. Continuemos com nossa questão: o que queremos dizer quando dizemos: ‘Creio na Igreja’? É crer no papa, no bispo, no padre? É crer no templo ou capela que está na praça? Que é Igreja, afinal? Qual sua origem? Sua identidade? Que nos trás a palavra Igreja? Como compreender a Igreja e sua missão hoje no mundo?

Igreja: Que é isso?

Que é Igreja?

A palavra “Igreja” (do grego, “ekklesia”; do latim, “ecclesia”) significa “chamar fora”, “convocar”, “convocação”[b]. Para os antigos Igreja não começou sendo um nome próprio, muito menos uma instituição, se parecia mais com “o encontro”, “a reunião dos que seguiam Jesus”: “Paulo, Silvano e Timóteo à igreja de Tessalônica, em Deus nosso Pai, e no Senhor Jesus Cristo...” (2Ts 1,1); “Depois que essa carta tiver sido lida entre vós, fazei-a ler também na igreja de Laodicéia” (Cl 4,16). Aqui é o apóstolo Paulo escrevendo as comunidades ou grupos de cristãos nesses lugares. Mas é Paulo quem vai começar a dá o sentido universal e abrangente do termo ekklesia, vai usar para significar “o movimento todo dos cristãos” (cf. 1Cor 16,1.19; Gl 1,2; 2Cor 8,1; 1Ts2,14; Rm 16,4.16)[c]. A Igreja era a pequena reunião do grupo dos discípulos, que se encontravam, “aqui” ou “ali”, que depois toma proporções maiores.

Também, a Igreja não é uma “nova invenção” dos discípulos, muito menos de Jesus: de onde surge a Igreja? No Primeiro Testamento havia a “qahal”, ou seja, “a reunião do povo de Israel”, povo de Javé. Era a “assembléia da comunidade política e cultual”[d]: “Se Javé afeiçoou-se a vós e vos escolheu, não é por serdes o mais numeroso dos povos - pelo contrário: sois o menor dentre os povos! – e sim por amor a vós e para manter a promessa que ele jurou aos nossos pais” (Dt 7,7-8).  É dessa idéia desse “povo eleito” e “querido” de Javé que irá se formar a Igreja a partir do Segundo Testamento das experiências pascais dos discípulos com Jesus, ou seja, a partir da ressurreição os discípulos começam a se organizar como comunidade.

Essa Igreja levada a cabo pelos discípulos ao longo da história adquiriu algumas características especiais; é una, santa, católica e apostólica. O que quer dizer tudo isso? É una porque na diversidade ela é unida e unificada pela força do Espírito Santo; é santa pela presença e atuação de Jesus no seu seio; é católica (do grego “katólon”: que tudo abrange; universal) por sua ‘pretensão missionária’, levar Cristo a tudo e todos; é apostólica porque foi erguida sobre o fundamento dos apóstolos de Jesus[e].

Hoje Igreja tem vários significados: lugar de culto, denominação cristã (igrejas), Igreja católica, comunidade cristã; Igreja pode acenar também para “clero”, padres, bispos. Voltando para sua definição primeira, como a comunidade dos discípulos a entendia e vivia, Igreja somos todos nós, batizados e batizadas convocados por Cristo para construir o Reino de Deus, a assembléia dos convocados: ‘comunidade do seguimento de Jesus’. É a comunidade guiada pelo Espírito, a força do alto prometida por Jesus e manifestada a partir do Pentecostes.

As Imagens da Igreja

Como vamos construir essa Igreja? Qual sua identidade? No Primeiro e Segundo Testamento da Sagrada Escritura encontramos imagens, figuras as quais podemos estabelecer comparações que nos ajudam a “desenhar” o “ser próprio da Igreja”, o que ela é profundamente:

a) o redil ou a grei (curral, cercado) – A Igreja é o redil ou curral em que Jesus é a porta por onde passam todas as ovelhas (cf. LG 6): “Eu sou a porta. Se alguém entrar por mim, será salvo; sairá e encontrará pastagem” (Jo 10,9). O curral das ovelhas, ao qual Jesus é o Pastor e Porta, todas as ovelhas o conhecem e ele conhece todas as ovelhas (cf. Jo 10,3-4), como também ele as conduz para fora, para as pastagens, com liberdade e as deixa entrar para descansar: não as prende, mas as protege. Neste redil não há pastor maior que o próprio Deus, Deus é seu maior e verdadeiro pastor: “Assim diz o Senhor Javé: ‘Certamente eu mesmo cuidarei de meu rebanho e o procurarei. Como pastor cuida de seu rebanho, quando está no meio de suas ovelhas dispersas, assim cuidarei das minhas ovelhas e as recolherei de todos os lugares por onde se dispersam em um dia de nuvem e de escuridão’(Ez 34,11-12). Assim, a Igreja-Redil é o espaço da comunhão, da paz, de encontro sob a carinhosa moa do Pastor Supremo.

b) a lavoura (campo de Deus) – A Igreja é a plantação de Deus onde cresce a Videira Verdadeira a qual todos nós somos seus ramos: “Permanecei em mim, como eu em vós. Como o ramo não pode dá fruto por si mesmo, se não permanecer na videira, assim também vós, se não permanecerdes em mim” (Jo 15,4). O Pai é o agricultor deste campo: ele quem cuida, limpa, aduba, poda e deixa crescer. A Igreja é a Lavoura de Deus enquanto está ligada a seu tronco, Jesus; desvinculada deste, é “erva-daninha”, “mato”, é “praga” que deve ser arrancada.

c) a construção (morada, templo) – ele é a Construção de Deus erguida por seus apóstolos (cf. CIC 756). Jesus é a pedra fundamental, “a pedra viva” (cf. Pd 1,4), é nela que essa construção se sustenta: “Isso é, para vós que credes ela será um tesouro precioso, mas para os que não crêem, a pedra que os edificadores rejeitaram, esta tornou-se a pedra angular, uma pedra de tropeço, uma rocha que faz cair” (1Pd 1,7-8). Na morada da Igreja, Jesus, a pedra viva, tudo edifica, mas também faz ruir as paredes que aprisionam ou escondem a luz. A Igreja que estamos edificando é essa Construção de Deus?

d) a Cidade Santa (a Jerusalém Celeste) – “Vi então um céu novo e uma nova terra – pois o primeiro céu e a primeira terra se foram e mar já não existe. Vi também descer do céu, de junto de Deus, a Cidade Santa, uma Jerusalém nova... Não vi nenhum templo nela, pois seu templo é o Senhor” (Ap 21,1-2.22). A Igreja é a imagem dos novos tempos, de um mundo ou sociedade melhor, não uma “entre” as outras, mas uma “com” as outras. Em que isso questiona a nossa Igreja?

São inúmeras as imagens da Bíblia que podemos aludir a Igreja: família, tenda, esposa etc. Como essas figuras colocamos o ideal de Igreja construído na história. Onde esse ideal se aproxima do real? Onde precisa melhorar?

O Reino de Deus e a Igreja

Que é o Reino?

Jesus inicia sua vida pública com a pregação do Reino ou Reinado de Deus: “Cumpriu-se o tempo e o Reino de Deus está próximo. Arrependei-vos e crede no Evangelho” (Mc 1,15). Que Reino é esse? Primeiro é importante considerar que a terminologia “Reinado” é mais apropriada que Reino, pois, não estamos falando de reino como governo de uma rei, com castelo etc; segundo, em vários momentos nos Evangelhos Jesus fala do significado do Reinado de Deus, um momento privilegiado disso é o “discurso das parábolas”; é por elas, de forma comparativa e pedagógica que ele revela o ‘mistério do Reinado de Deus’(cf. Mt 13, 11): o Reinado é a semente boa que cresce com o joio, a semente ruim (cf. Mt 13,24-30); é como o tesouro ou pérola encontrada pelo negociante que vende tudo e a compra (cf. Mt 13,44-45); é como a rede que lançada ao mar apanha todo tipo de peixe (cf. Mt 13,47-50); o Reinado de Deus é como a semente que germina e cresce por si só (cf. Mc 4,26-29). Assim, as parábolas nos mostram o Reino como uma realidade avassaladora, implacável, que toma toda vida da pessoa, suas decisões, ações, que o faz entregar-se; é uma nova ordem.

Há um carinho e uma preocupação de Jesus quando fala do Reinado de Deus: “Este Reino manifesta-se aos homens lucidamente nas palavras, nas obras e na presença de Cristo” (LG 5). É o grande projeto de Jesus, mas não só isso! É o que ele pregou, mais ainda, sua própria pessoa. Quando ele chega, se aproxima dos homens ele traz o Reino. Podemos nos perguntar como os fariseus sobre quando chegará ou quando se realizará este Reino, aos quais Jesus responde: “A vinda do Reino de Deus não é observável. Não se poderá dizer: ‘Ei-lo aqui! Ei-lo ali! Pois eis que o Reino de Deus está no meio de vós” (Lc 17,20-21). ‘O Reino se realiza, de certo modo, onde quer que Deus esteja reinando mediante sua graça, seu amor, vencendo o pecado e ajudando os homens a crescer até conseguir a grande comunhão que lhes é oferecida em Cristo’ (cf. P 226); esse Reinado começa aqui na Terra entre todos os homens e mulheres e culmina no Reino dos Céus.

No Reino de Deus ocupa um lugar privilegia do os pobres: o Reino pertence aos pobres e pequenos. Jesus compartilha a vida dos pobres desde a manjedoura até a cruz, conhece a fome, a sede, a indigência. Mas ainda, identifica-se com os pobres de todos os tipos e faz do amor ativo para com eles a condição para se entra no Reino (cf. CIC 544).

O Reinado de Deus é a alegria e a vida da nova proposta de Jesus “para que todos tenham vida e vida em abundância” (Jo 10,10). Ele também traz consigo conseqüências: incompreensão, perseguição, cruz! Será que estamos preparados para ele? Em que a proposta do Reinado de Deus nos inquieta? Estamos construindo o Reino de Deus?

O Reino e sua Relação com a Igreja

O Reino é a Igreja? Não necessariamente. “É da pregação sobre o Reino que nasce a Igreja. Esse Reino sem ser uma realidade separável da Igreja (LG 8a), transcende seus limites” (P 227). O Reino está para além dos ‘muros’ da Igreja, não possui Igreja ou povo; deste a Igreja é sinal, germe e princípio (cf. P 227-228).

Mas, a final, Jesus não fundou a Igreja? Jesus interroga os discípulos sobre o que falam sobre ele, quando depois Pedro responde, ele fala: “Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja  e as portas do Inferno nunca prevalecerão sobre ela” (Mt 16,18). Jesus “funda” a Igreja enquanto firma com seus discípulos, sua “ekklesia”, sua “comunidade de convocados”, o propósito de levarem a esperança do Reino a todos os cantos. Pedro, líder dos apóstolos, ao mesmo tempo que é o primeiro “Papa”, primeira pedra dessa construção, a qual Jesus é a “pedra fundamental”, também é símbolo de todos os cristãos pedras vivas que fazem acontecer o edifício da Igreja.

“Mas a Igreja de hoje ainda não é aquilo que está chamada a ser” (P 231), ela necessita de permanente auto-evangelização; para ser evangelizadora, precisa evangelizar-se. Os critérios para essas auto-evangelização são os valores do Reino expostos no Evangelho. É vislumbrando o Reinado de Deus que a Igreja peregrina se encontra com sua verdadeira vocação, e “as portas do Infernos não prevalecerão sobre ela” (cf. Mt 16,18b), ou seja, as limitações dos homens que fazem parte da Igreja, os erros da história, nada disso tirará sua força enquanto ela “correr” à seu objetivo.

Igreja, Povo de Deus

Das compreensões mais profundas da essência da Igreja, é a de Povo de Deus que ela se encontra consigo mesma. A Igreja na história percorre muitos caminhos: a vida simples das primeiras comunidades de Jerusalém (nos Atos dos Apóstolos): “Eles mostravam-se assíduos ao ensinamento dos apóstolos, á comunhão fraterna, à fração do pão e às orações” (At 2,42); depois, a identificação com o poder e o Império Romano; a dominação religiosa na Idade Média, ‘todo o mundo católico’; a crise, opulência e perda de sentido na Idade Moderna; mas na contemporaneidade, década de 1960, com o Concílio Vaticano II, ela faz o movimento de “volta a suas origens”: o Povo de Deus.

“Aprouve contudo a Deus santificar salvar os homens não singular, sem nenhuma conexão uns com os outros, mas constituí-los num povo...” (LG 9). Então, Deus convoca Israel como seu Povo. À imagem de Israel no Primeiro Testamento, a Igreja aparece como o Novo Povo de Deus; as pessoas, agora, tornam-se membros deste ‘novo povo’ pelo batismo, não por nascimento, sangue ou família; tem como líder “Cabeça”, Jesus Cristo, “Supremo Pastor” (1Pd 5,4) e chefe de todos os pastores; esse povo é, por natureza, livre, porque no coração de cada um de seus membros reside o Espírito Santo, “vento que sopra onde quer” (Jo 3,8); a lei que rege esse povo é o mandamento novo de Jesus: “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei” (Jo 15,12); sua missão é ser sal da terra e luz do mundo (cf. Mt 5,13-16) e sua meta é o Reino, que começa aqui na terra e culmina no fim dos tempos (cf. CIC 782).

Quando a Igreja se compreende como Povo de Deus ela quer superar e evitar um modo individualista de viver a fé (cf. P 235) e ser família, povo santo, peregrino e enviado por Deus[f]. Isso, pois, “a Igreja não é o lugar em que os homens ‘se sentem’, mas o lugar em que se fazem povo, família (cf. P 240): a pergunta não é ‘como me sinto na Igreja’, mas se ‘sou Igreja’. Essa família de Deus é ‘o lar onde cada filho e cada irmão é também senhor’ (cf. P 242) com toda beleza e diversidade próprias de nossas comunidades.

“Se a Igreja é Povo de Deus, isso quer dizer que o seu ministério de comunhão com o Pai, o Filho e o Espírito Santo se vive e se realiza numa condição de povo”[g]; ou seja, a própria maneira de Deus revelar-se é como povo, não um “gueto de santos”, “separados”, mas o povo “com” e “para” os povos, isso para acentuar que não estamos sozinhos no mundo e aqui estamos para servir. É fascinante essa compreensão de Igreja: onde ela está mais presente? Onde precisamos evocá-la?

Igreja, Corpo de Cristo (1Cor 12)

Porque, como o corpo é um todo tendo muitos membros, e todos os membros do corpo, embora muitos, formam um só corpo, assim também é Cristo. Em um só Espírito fomos batizados todos nós, para formar um só corpo, judeus ou gregos, escravos ou livres; e todos fomos impregnados do mesmo Espírito” (1Cor 12,12-13).

Povo de Deus é a realidade visível, peregrina da Igreja. Corpo de Cristo é a realidade invisível, espiritual. Diz respeito à intimidade de Jesus com os seus, ao próximos que acabam se identificando (cf. CIC 787): “Permanecei em mim como eu estou em vós” (Jo 15,4); é o pedido de Jesus para todos permanecermos nele. “A figura do corpo é ilustrativa para explicar a diversidade dos membros e das funções, bem como a unidade de todo em vista do bem comum”[h].

Com podemos compreender melhor isso? Primeiro, a Igreja é Corpo de Cristo, porque é “comunidade de comunhão”. Nela, os que se reúnem partilham sua vida, fé, seus dons. O Corpo (Igreja) integrado a Cristo, - “ele é a Cabeça da Igreja, que é seu Corpo” (Cl 1,18) - faz acontecer a vida comunitária e a esperança do Reino. Não existe vida se o corpo está separado de sua cabeça, assim também, não existe Igreja separada de Jesus, de sua vida, de seu Evangelho, de seu Reino, de sua Cruz e Ressurreição. Por isso todos e cada um com seus dons devem fazer e ser esse “Corpo”; e frente aos conflitos devemos nos perguntar: estamos ligados a nossa Cabeça, Jesus? Nosso Corpo (Igreja, comunidade...) é coerente à sua Cabeça?

A Igreja é Corpo de Cristo, ainda, porque nela acontece a comunhão do corpo eucarístico do Senhor[i]. De forma concreta e espiritual a comunidade ao redor da mesa da Eucaristia se faz Igreja: “Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim e eu nele (Jo 6,56). a Ceia é o banquete de todos, sobretudo dos excluídos de nossas comunidades a mesa deve nos ajudar a questionar: onde estão os excluídos de nossa comunidade? quem participa dessa mesa? Porque participa? Quem não participa e porque não participa? Que a comunhão desperta em nós?

A vocação de toda mesa é incluir, “chamar para comer”, ainda mais a mesa eucarística. Os bispos e padres são os “chefes” da mesa; nesse corpo são membros também, mais para servidores que para “donos”; aqui estão para dá o alimento que não é propriedade sua. Assim nos ensinou Jesus na última ceia: “Depois que lavou os pés, retomou o seu manto, voltou a mesa e lhes disse: ‘Compreendeis o que vos fiz? Vós me chameis de Mestre e Senhor e dizeis bem, pois eu o sou. Se, portanto, eu o Mestre e Senhor, vos lavei os pés, também deveis lavar-vos os pés uns dos outros” (Jo 13,12-14).

Igreja dos Pobres

Em nosso Continente Latino-Americano e no mundo subdesenvolvido ou “em desenvolvimento”, há uma realidade concreta frente a nosso olhos: a pobreza, a miséria e indigência. “Essa miséria como fato coletivo se qualifica de injustiça que clama aos céus” (M, p. 9). ‘Essa situação de extrema pobreza generalizada adquire, na vida real, feições concretíssimas, nas quais deveríamos reconhecer as feições sofredoras de Cristo: feições de crianças pobres e abandonadas, feições de jovens desorientados e sem oportunidades, feições de índios e negros em situações desumanas, feições de camponeses sem terra em situação de dependência, feições de operários mal remunerados, feições de subempregados e desempregados demitidos, feições de marginalizados amontoados nas grandes cidades, feições de idosos postos a margem da sociedade’ (cf. P 31-39). Podemos ampliar e atualizar essa lista: “os migrantes, as vítimas da violência, os deslocados e refugiados, as vítimas do tráfico de pessoas e seqüestros, os desaparecidos, os enfermos de HIV e de enfermidades endêmicas, os tóxico-dependentes, idosos, meninos e meninas que são vítimas da prostituição, pornografia ou violência ou do trabalho infantil, mulheres maltratadas, vítimas da exclusão e do tráfico para a exploração sexual, pessoas com capacidades diferentes, grandes grupos de desempregados/as, os excluídos pelo analfabetismo tecnológico, as pessoas que vivem na rua das grandes cidades, os indígenas e afro-americanos, agricultores sem terra e os mineiros” (A 402).

Esses não são só dados para ficarmos alarmados, mas o próprio rosto de Deus desfigurado, o Deus que criou o homem e viu que era muito bom o que tinha feito (cf. Gn 1,31). É do encontro do Evangelho de Jesus com essa realidade “gritante” que nasce a Igreja como Igreja dos Pobres. Os pobres são a grande opção de Jesus: “Bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus” (Lc 6,20). Com os pobres não temos uma dívida como se precisássemos lhes dá alguma esmola, mas o encontro com o pobre nos apresenta a esperança do Reinado de Deus e nos aproxima das opções de Jesus.

Todo esse povo reunido clama a Deus e em comunidade torna-se Igreja. A Igreja dos pobres realiza a síntese entre as outras duas visões de Igreja, Povo de Deus e Corpo de Cristo; esse povo é o “Povo dos Pobres”, esse corpo é o “Corpo dos Pobres. Como dizia João Crisóstomo, santo dos primeiros séculos da Igreja (séc. IV): “Queres honrar o corpo de Cristo? Não o desprezes quando está nu; não o honres aqui com vestes de seda e abandones fora no frio e na nudez o aflito. Pois aquele que disse: ‘Isso é meu corpo’ (Mt 26,26) e confirmou com o ato a palavra, é o mesmo que falou: ‘Tu me vistes faminto e não e alimentaste (Mt 25,45)”. Desde o princípio a Igreja já se configurava como Igreja dos Pobres, ou ao menos para os pobres.

Dá para esconder, “maquiar” perder de visa que nossa Igreja é “Igreja dos Pobres”? Já assumimos essa nossa condição? Que fazemos para reavivar a esperança dos pobres (e jovens pobres) de nossas comunidades? Isso pois Jesus ama os pobres mais denuncia toda pobreza como ‘mistério de iniqüidade’, do mal.

A Igreja que se faz pobre, mais ainda, que permite aos pobres se sentirem Igreja a ponto de construírem a Igreja dos pobres, com sua cultura de pobres, com sua situação espoliada (e denunciada profeticamente), com sua forma de celebrara Jesus Cristo que se fez pobre (cf. 2Cor 8,9), com a confiança no Espírito Santo, ‘pai dos pobres’, uma Igreja assim se torna, efetivamente, o sacramento da libertação e pode se apresentar como portadora do mistério da libertação integral”[j].

Para Onde Vamos?

“Quantas vezes ouvimos dizer; ‘Jesus Cristo, sim; Igreja, não’[k]. É cada vez mais crescente uma mentalidade de que a Igreja não “serve” ou não “presta”: é corrupta, opulenta etc; sobretudo no que diz respeito a “hierarquia”, ou seja, o clero: bispos e padres. Com o caminho que fizemos podemos ir para além dessa perspectiva, na compreensão de Igreja com o Povo de Deus peregrino construindo seu Reinado sob a força do Espírito, o “Pai dos Pobres”.

Esse povo tem uma missão nesse mundo: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo” (GS 1). O coração da Igreja é o coração de todo homem e mulher; todo cristão é chamado a viver e anunciar a radical festa do Reino. Santa e pecadora a Igreja segue em frente. Santa por seu Pastor Supremo, Jesus; pecadora por seus membros, limitados, carentes de perfeição. E onde houver erro valha-lhe a profecia para denunciá-lo; onde houver dor que o anuncio da esperança seja voz retumbante.

Vivemos sob a promessa de Jesus: “... e as portas do Inferno nunca prevalecerão sobre ela” (Mt 16,18); mais que uma instituição, um povo, a Igreja é “Mistério”, mistério concreto do amor de Deus revelada na vida de pessoas - santos, mártires - que dedicam sua vida a inexorável causa do Reino de esperança e paz.


Siglas e Abreviaturas

A
Aparecida. V Conferência do Episcopado da América latina e do Caribe
CIC
Catecismo da Igreja Católica.
GS
Gaudium et Spes (As alegrias e as Esperanças). 
Constituição Pastoral do Concílio Vaticano II.
LG
Lumem Gentium (A luz dos povos). 
Constituição Dogmática do Concílio Vaticano II.
M
Medellín. II Conferência do Episcopado da América latina e do Caribe.
P
Puebla. III Conferência do Episcopado da América latina e do Caribe.



*  Eclesiologia é parte da Teologia que estuda o Mistério da Igreja.
[b]No grego comum dac época, “ekklesia” indicava a assembléia dos cidadãos (dos sexo masculino) livres de uma polis ou cidade para fazer eleições... Entretanto, grupos com fortes laços internos, como os primeiros cristãos, desenvolveram rápido o seu próprio jargão... eles fizeram isso em contexto variado: para ‘livre associação’ de cristãos reunidos ‘na casa X’; também para várias comunidades domésticas de uma cidade, ‘a Igreja que fica emCorinto’; usavam para as comunidades cristãs de algumas cidades e finalmente para todos os cristãos do mundo”. Eduard SCHILLEBEECX. Por uma Igreja mais humana. São Paulo: Paulinas, 1989, p. 60. 
[c] Cf. o. c., p. 61.
[d] Cf. Jean-Yves LACOSTE. Igreja, in Dicionário crítico de teologia. São Paulo: Paulinas, 2004, p. 852.
[e] Cf. Medard KEHL. A Igreja: uma eclesiologia católica. São Paulo: Loyola, 1997, p. 117-122.
[f] Isso não é caminho de agora, os cristão desde os primeiros séculos já faziam esse caminho de Povo Peregrino, como está claro na Carta a Diogneto, escrito cristão do século II em que um curioso do cristianismo chamado Diogneto indaga a um discípulo sobre os cristãos, este responde: “Não se destinguem os cristão dos demais, nem pela região, nem ela língua, nem pelos costumes. Não habitam cidades a parte, não empregam idioma diverso dos outros, não levam gênero de vida extraordinário. A doutrina que se propõem não foi excogitada solicitamente por homens curiosos. Não seguem opinião humana alguma, como vários fazem. Moram alguns em cidades gregas, outros em bárbaras, conforme a sorte de cada um; seguem os costumes locais relativamente ao vestuário, à alimentação e ao restante estilo de viver, apresentando um estado de vida (político) admirável e sem dúvida paradoxal. Moram na própria pátria, mas como peregrinos. Enquanto cidadãos, de tudo participam, porém tudo suportam como estrangeiros. Toda terra estranha é pátria para eles e toda pátria, terra estranha”. Alberto BECKHÄUSER (coor.). A Carta a Diogneto. Petrópolis: Vozes, 1976, p. 22.

[g]  José COMBLIIN. O Povo de Deus. São Paulo: Paulus, 2002, p. 134.
[h] Leonardo BOFF. Novas fronteiras da Igreja: o futuro de um povo a caminho. Campinas: Verus, 2004, p. 19. 
[i] BOFF, o., c., p. 20.
[j] Boff, o. c., p. 22.
[k] Yves CONGAR. A Igreja: ponte ou obstáculo? in NEUFELD, K.H. Problemas e perspectivas de teologia dogmáica. São Paulo: Loyola, 1993, p. 200.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Olhar com os Olhos de Jesus: Algumas Ideias de Metodologia Pastoral

Márcio L'Oliveira


“Eu sou o Bom Pastor, eu conheço as minhas ovelhas, e as minhas ovelhas me conhecem, como o meu Pai me conhece e eu conheço o meu Pai; e eu me despojo da vida pelas ovelhas. Eu tenho outras ovelhas que não são desse redil, e também a estas é preciso que eu conduza; elas ouvirão a minha voz e haverá um só rebanho e um só pastor” (Jo 10,14-16).


Jesus é o Bom Pastor, aquele que conhece, cuida, conduz e dá a vida por suas ovelhas. Mas antes de tudo ele “CONHECE”, sabe quem está pastoreando, ou seja, conhece os membros de sua comunidade e até aqueles que não são de sua comunidade, “as ovelhas que estão fora de seu redil”, mas que necessitam de sua presença, cuidado, amizade. Jesus se encarnou em uma realidade particular, na Palestina de seu tempo[1]; ele também se encarna em nossa realidade e encarnado-se ele assume nossas dores e alegrias, nos conhece e nos faz um convite a conhecermos o chão onde caminhamos, isso porque, “as alegrias e esperanças, as tristezas e angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo”[2]. Olhar é sempre o primeiro passo par qualquer coisa na vida, sobretudo para quem quer começar um caminho sério e sincero; o “VER” é também o primeiro passo do método VER-JULGAR-AGIR da Igreja do Brasil e da América Latina; queremos começar por aqui.


Como discípulos e discípulas de Jesus, missionários e missionárias da Igreja, situados num mundo, num país, numa comunidade, devemos, olhando com os “óculos de Jesus”, o Supremo Pastor, nos perguntar: Onde vivemos? Como é a realidade na qual estamos inseridos? Quais são os questionamentos que nos fazem esta realidade? Que Deus está nos dizendo a partir dela? Quais os gritos de Deus que ecoam nesta realidade? Quais são as principais características da sociedade em que vivo (em seus aspectos social, político, econômico, cultural)? Que influência tem na nossa vida?[3]. Para, assim, tentarmos responder, mas também, aprendermos ou educarmo-nos a olhar o meio em que vivemos com os olhos de Deus. Olharemos de forma geral a sociedade para depois, tentarmos desenhar os desafios que enfrentamos em nossa comunidade local.

Olhando nossa sociedade


Hoje se faz muito difícil estabelecer um olhar sobre a sociedade, seja no âmbito mundial ou brasileiro, por conta das constantes e rápidas mudanças que acontecem no mundo inteiro[4]. Contudo, é fundamental estabelecer algumas características para nos situamos em que mundo estamos, nas quais percebemos gritos explícitos do Deus sofredor, que ver a dor, conhece a aflição de seu povo e desce para libertá-lo (cf. Ex 3,7-8).



1) Sociedade globalizada: crescimento intenso das comunicações, entre as pessoas empresas e países. Cotidianamente nossas casas e vidas são invadidas por fatos, acontecimentos, bons ou ruins do mundo inteiro que terminam por influenciar e determinar a nossa vida, isso se chama “globalização”. A sensação de que tudo está perto, e realmente está. Pessoas migram de um país para o outro e está cada vez mais fácil conhecer pessoas ou coisas de outros países e culturas. Isso, inicialmente, parece bom, a questão é quem comanda e quem ganham mais com isso tudo?[5]


2) Domínio econômico: os bens materiais por vezes se tornam valor absoluto. Há uma impressão geral que todos podem ter tudo, comprar tudo, é o que chamamos de “consumismo”.


3) Individualismo: difusão de uma forma de vida egoísta e anti-comunitária, cada vez mais se vive só pra si[6].
            · Crescimento desordenado das cidades: as pessoas que moravam na “roça” estão concentrando-se na cidade com condições de vida, muitas vezes, desumanas sem ter o básico para viver[7]. As condições econômicas produzem “levas” de migrantes que saem de suas cidades “interioranas” e se estabelecem nas periferias das cidades[8].
            · Desigualdades sociais: é sempre crescente o abismo existente entre ricos e pobres, há poucos que têm muito e muitos que têm apenas o básico, menos que isso ou quase nada para viverem bem[9].
            · Perda do sentido ético-moral: há uma mudança quase que uma mudança total dos valores que há orientam. Valores como solidariedade, fraternidade, justiça, amor são substituídos pela “Lei do Dinheiro”.
            · Explosão dos meios de comunicação: estes trazem inúmeros benefícios para todos nós, mas exercem uma influência negativa muito grande na formação da mentalidade do povo.
            · Migrações religiosas e novas igrejas: cada vez se ouve falar de práticas religiosas pessoais sem compromisso com uma comunidade. Também é muito presente o trânsito de uma igreja para outra e a proliferação de igrejas neo-pentecostais, essas igrejas novas e pequenas ou maiores que surgem em nossos bairros.

            Mas para não ficarmos só nos pontos negativos ou mais desafiadores, que são aqueles mais próximo aos nossos olhos, “os clamores que gritam aos céus”, como nos diz Medellin , podemos ainda dizer da nossa riqueza e beleza, sobretudo em relação ao nosso povo:
            Nosso povo é extremamente acolhedor, partilha com facilidade, vive a caridade, compadece-se dos sofrimentos dos outros; valoriza a amizade, ainda preza pela família com todas as dificuldades. Consegue se organizar e lutar por causas como luta contra a discriminação, promoção dos direitos das mulheres, preservação do meio ambiente, busca de justiça social. Nosso povo é jovem, e onde tem oportunidade, possui capacidade e criatividade de inovar e reivindicar vida diferente[10].

Olhando nosso chão

            E agora? E nosso chão, o chão de nossas comunidades? Claro que muitas dessas angústias e alegrias estão presentes por aqui. Lancemos, pois, o olhar de Jesus, o Pastor Cuidadoso, que olha para sua comunidade sem perder de vista o que está ao se redor. Voltemos a algumas  perguntas do início de  nossas reflexão:
            1. Onde vivemos?
            2. Quais as caracteristicas da realidade na qual estamos inseridos?
            3. Quais são os questionamentos que me fazem esta realidade?
            4. Que Deus está nos dizendo a partir dela? Quais os “gritos de Deus” que ecoam dessa realidade?
            5. Que influência têm na nossa vida?


SIGLAS

GS         Gaudium et Spes (As Alegrias e as Esperanças). Constituição Pastoral do Concílio Vaticano II.
P           Conclusões da Conferência de Puebla. Conselho Episcopal Latino-Americano, CELAM.
DGAE     Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil. Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, CNBB.



[1]  cf. Dinâmica de Análise da Realidade, em Revista Ecoando 13 (IV) 23.
[2]  GS 1.
[3]  cf. CELAM. Projeto de Vida: Caminho Vocacional da Pastoral da Juventude Latino-Americana. São Paulo: CCJ, 2003, p. 123.
[4]  cf. GS 4.
[5]  cf. DGAE 47.
[6]  cf. ARQUIDIOCESE DE FEIRA DE SANTANA. Plano de Pastoral. Paulo Afonso: Fonte Viva, 2002, p. 6.
[7]  cf. DGAE 50.
[8]  cf. ARQUIDIOCESE DE FEIRA DE SANTANA. Plano de Pastoral. Paulo Afonso: Fonte Viva, 2002, p. 7.
[9]  Id., Ibid. p. 6.
[10]  cf. P 17-21